Narração: Severino Gomes da Silva (Gomes da Caverna), 2017.12.09

Territorios: Baia de Guanabara
Água!nabara - Território Urca é uma realização do Instituto Urca, da Secretaria Especial da Cultura, Ministério do Turismo e Governo Federal através da Lei de Incentivo à Cultura com o patrocínio da Companhia de Navegação Norsul.
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00:00:00 - Trabalhos como guardião de piscina

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Partial Transcript: ALEXANDRA - Você mora aqui desde quando?

SEVERINO - 77.

ALEXANDRA - 77?

SEVERINO - Janeiro de 77 pra ser exato.

ALEXANDRA - Veio aqui por quê?

SEVERINO - Vim fazer um curso de guardião de piscina.

ALEXANDRA - Fez o curso?

SEVERINO - Fiz.

ALEXANDRA - Trabalhou como guardião de piscina?

SEVERINO - Trabalhei. Trabalhei no (?), trabalhei no Flamengo, trabalhei no Jóquei, trabalhei em diversos lugares, condomínio…

00:00:32 - Situação de rua e habitação em caverna

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Partial Transcript: ALEXANDRA - Direto. E o senhor mora aqui no Pão de Açúcar?

SEVERINO - Eu sou morador de rua hoje em dia, já morei lá dentro, mas a prefeitura tirou.

ALEXANDRA - O senhor é morador de rua de escolha, tem essa coisa?

SEVERINO - Não tem. Não tenho nada, não tenho pai, não tenho mãe, não tenho merda nenhuma, vou fazer o que? É a vida, faz parte. Fiz escolhas erradas, tudo não é feito das nossas escolhas? São meus vizinhos.

ALEXANDRA - Seu vizinho, desculpa, eu puxei ele pro chão…

SEVERINO - Tudo bem, tá em casa.

ALEXANDRA - O senhor tinha casa aqui no morro?

SEVERINO - Não, era uma caverna. Tanto que meu e-mail é “Gomes da caverna”.

ALEXANDRA - E como é essa caverna?

SEVERINO - Uma lá, uma lá pra… um formato assim. Agora tá cheio de mato o lugar, cobra. Só jibóia vai ter umas duas aí dentro.

ALEXANDRA - Ah, é? E a convivência com jibóia, como é que é?

SEVERINO - É natural, é um animal que é manso, só ataca pra se alimentar.

ALEXANDRA - A vista deve ser muito boa de lá, né?

SEVERINO - Muito bonita!

00:01:58 - Resgate de pessoas

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Partial Transcript: ALEXANDRA - E o senhor não fica com falta de companhia?

SEVERINO - Não, tudo resolvido, Deus tá sempre comigo, em minha cama, é tudo de graça…

ALEXANDRA - É, né? Eu soube que o senhor resgata pessoas às vezes.

SEVERINO - Eu já fiz isso, hoje tive um AVC, não tenho mais condição.

ALEXANDRA - Ah, é?

SEVERINO - Resgatei muito no Pão de Açúcar, no Morro da Urca, no mar… Hoje em dia nem nadar eu nado mais; só não afundo, porque titica não afunda, né?

ALEXANDRA - Não nada mais… Aprendeu a nadar onde?

SEVERINO - Eu me especializei na Marinha, era nadador da equipe de natação.

00:02:49 - Significado de ser morador de rua

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Partial Transcript: ALEXANDRA - O que significa ser morador de rua?

SEVERINO - Significa a vida cotidiana de quem não tem nada na vida.

ALEXANDRA - Sem pertences, sem apego?

SEVERINO - Exatamente, nada me pertence, tudo emprestado; quando eu morrer, vai ficar tudo aí, e a vida continua…

ALEXANDRA - Pra todos, né?

SEVERINO - Uhum…

ALEXANDRA - O que que você gosta daqui, por que você veio parar aqui mesmo?

SEVERINO - Quando eu vim pra cá, vim fazer esse curso de guardião de piscina. Daí uma época, um militar aí falou que eu tenho condição de olhar lá em cima pra neguinho não fazer barraco, que lá dentro já foi favela. Eu fiquei lá 32 anos, aí acharam que eu não devia ficar mais: “Oh, vaza!”, então tá. Eu saí, quando eu voltei tava os meus pertences quebrados, jogados no lixo e procurei assim mesmo, fazer o que? Isso é Brasil. A cegonha devia ter tomado umas cachaças quando me trouxe, errou o caminho.

ALEXANDRA - Você não casou? Não tem filhos?

SEVERINO - Eu sou doido, mas não sou burro. Tem dois tipos de mulher, não sei diferenciar uma da outra, então…

00:04:19 - Árvores locais

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Partial Transcript: ALEXANDRA - O senhor sabe todos os nomes das árvores aqui dentro?

SEVERINO - Hã?

ALEXANDRA - Das árvores… conhece todas?

SEVERINO - Um pouquinho. Já salvei até (?), já curei até (?) com erva que tem aí dentro. Outro dia fui tirar uma raiz pro camarada fazer um remédio, o fiscal: “Não pode”, mandou o cara jogar fora. Ele preferiu jogar fora, do que ajudar alguém. Fazer o que? Eles que tão mandando. Eu nem pedir peço, porque eu não gosto de pedir, só peço quando eu preciso, mas fora disso… Sou chato, sou chato. Quem sou eu pra agradar gregos e troianos, né? Quem podia não fez, imagina eu.

00:05:14 - Histórias do cotidiano compartilhadas na internet, infância e cachorros

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Partial Transcript: ALEXANDRA - O senhor disse que tem muitas histórias no Google, né?

SEVERINO - Tenho só um… É que eu tenho um amigo que ele é professor de jornalismo e comunicação, daí ele ia muito lá na cabana, na caverna, e entre conversas ele juntou alguns fatos e colocou lá… e colocou na internet. É fragmento biográfico só, coisa pouca. Há mais com ele, queria escrever um livro, mas eu nunca quis…

ALEXANDRA - A sua infância foi aonde?

SEVERINO - Em Pernambuco.

ALEXANDRA - Também no mato?

SEVERINO - Não, não. Apesar que eu nasci na roça, vim pra cá já com oito anos.

ALEXANDRA - Cê ficou órfão?

SEVERINO - Hã?

ALEXANDRA - Ficou órfão jovem ou não?

SEVERINO - Minha mãe desencarnou eu tinha três meses, segundo minhas avós.

ALEXANDRA - E aqui a vida é boa, não?

SEVERINO - A vida é boa em qualquer lugar, desde que você esteja bem consigo mesmo. Oh, Barbudo!

ALEXANDRA - Olá! Não teve cachorro aqui não?

SEVERINO - Hã?

ALEXANDRA - Você já teve cachorro?

SEVERINO - Já tive 24 lá dentro.

ALEXANDRA - Sério? 24 de uma vez?

SEVERINO - De uma vez. Depois eu saí doando, doando, eles foram morrendo, a cobra foi matando também… filhote é assim, a cobra vai matar, porque ele vai brincar, a cobra pica, ele morre com duas, três horas depois, morre com a cara desse tamanho. Eu já fiz matéria pra Globo, há um ano atrás eu também saí na Ana Maria Braga, mas não cheguei a ver não, quem viu foi um colega meu.

ALEXANDRA - Sobre o que?

SEVERINO - Sobre a minha vida cotidiana.

00:07:35 - Apelidos

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Partial Transcript: ALEXANDRA - O senhor disse que era hermitão.

SEVERINO - Foi um apelido que uma pessoa colocou em mim, um apelido que um oficial aí colocou em mim.

ALEXANDRA - O senhor acredita? Gostou do apelido?

SEVERINO - Pra mim não faz diferença, o que vier… cada um chama você como quer, independente de você aceitar ou não. Eu não me incomodo com o que as pessoas pensam de mim.

ALEXANDRA - Qual é o seu nome completo?

SEVERINO - Severino Gomes da Silva.

ALEXANDRA - E o apelido?

SEVERINO - Tem tantos! Tem “sem futuro”, tem “capitão do mato”, tem “grilo”, tem “galo da praia”... tem um montão.

ALEXANDRA - O que você acha de todas essas pessoas aqui tentando fazer alguma coisa pro meio ambiente?

SEVERINO - É louvável.

00:08:57 - Problemas com celular

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Partial Transcript: ALEXANDRA - Nós podemos voltar pra conversar com o senhor outra hora?

SEVERINO - Pode.

ALEXANDRA - Eu soube que o senhor mudou da caverna aqui pra baixo, perto da praia, verdade?

SEVERINO - É verdade.

ALEXANDRA - Então, iremos procurar o senhor.

SEVERINO - Meu telefone pifou, deu problema aqui, não tá mais piscando o visor.

ALEXANDRA - Não tá funcionando?

SEVERINO - É, não mostra o visor, tá vendo? Não aparece.

ALEXANDRA - Então, não dá pra usar?

SEVERINO - Não dá, porque ele chama, mas não tem como ligar; e ele tá com bateria.

ALEXANDRA - Tá precisando de um novo, então.

SEVERINO - Uhum.

ALEXANDRA - Eu perdi o meu ontem.

SEVERINO - Eu já perdi 45…

ALEXANDRA - (risos)

SEVERINO - O último roubaram. Eu botei pra carregar, o colega deixou em cima da mesa, não falou que tava carregando na hora, levaram. É a vida, faz parte. Depois aparece um…

00:10:17 - "O mar sempre foi a lixeira do planeta"

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Partial Transcript: ALEXANDRA - Tem alguma experiência/história que você quer compartilhar?

SEVERINO - Tudo bem? Oi?

ALEXANDRA - Experiência ou uma história da vivência aqui, sobre a Urca ou a Baía de Guanabara?

SEVERINO - Não. A experiência é que eu fiz muito resgate na praia, no Pão de Açúcar, e só.

ALEXANDRA - O senhor lembra da Baía de Guanabara quando era limpa?

SEVERINO - Não. Tô aqui só há 40 anos e o mar nunca foi limpo, desde que o mundo é mundo que o mar sempre foi a lixeira do planeta.

ALEXANDRA - Então, tá tão bom hoje, quanto tava antes?

SEVERINO - Hoje talvez pior, né? Porque enquanto uns tiram, outros colocam. Então, é assim, é a roda. Você vai, apanha o lixo ali, depois eu vou e coloco outro… e assim vai.

ALEXANDRA - E os animais do mar, tinha mais?

SEVERINO - Eu só tinha cachorro que às vezes eu pegava da rua, nego larga, às vezes nego largava sabendo que eu cuidava, aí largava aí… coisa que eu vinha a saber.

ALEXANDRA - Eu tinha um cachorro durante 11 anos que era muito especial, chamava Ulisses, grandão, de 50 quilos.

SEVERINO - O meu último morreu com 18 anos.

ALEXANDRA - É lindo… Qual era o nome?

SEVERINO - Papillon, borboleta em francês.

ALEXANDRA - Tem um filme famoso desse nome também.

SEVERINO - Eu li o livro.

ALEXANDRA - O senhor escreve também?

SEVERINO - Não. Só leio um pouquinho.

ALEXANDRA - Gosto de ler.

SEVERINO - Eu também gosto.

00:12:24 - Gestor de pista

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Partial Transcript: ALEXANDRA - Bem, foi um prazer conhecer, e a gente volta a entrar em contato… Soubemos, foi o Marcelo que falou primeiro pra falar com você, né?

SEVERINO - O Marcelo é o gestor aqui da pista.

ALEXANDRA - E você ajuda muito, eu acho, você também é um gestor da pista.

SEVERINO - Não, já fiz… mas aí queriam que eu ficasse trabalhando pra ele de graça, eu não trabalho pra prefeitura de graça. Eu passei 32 anos cuidando disso aí, o que a prefeitura fez comigo? E o cara que eu votei nele, por isso que eu não voto mais em corno nenhum, e eu voto muito longe, a distância é muito grande pra onde eu voto, do outro lado da praia.

00:13:13 - Necessidades e desejo para o ano novo

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Partial Transcript: ALEXANDRA - Cê mora onde?

SEVERINO - Eu moro do lado de cá, deito aqui, deito em qualquer lugar e foda-se.

ALEXANDRA - Você tem necessidade de alguma coisa?

SEVERINO - Eu tenho necessidade de tudo, não tenho nada, menina.

ALEXANDRA - Onde é que você come?

SEVERINO - Eu pego comida ali no quartel, às vezes quando eu tô; quando eu não tô também, eu não faço nada; então, não gasto energia; então, tá tudo bem. Eu tô esperando só Zé Maria me dar carona, que eu tô na prorrogação já tem tempo. Galho de árvore já caiu em cima de mim e me quebrou clavícula e fêmur; já tive AVC, tenho sequela desse lado que não tenho força na esquerda… Mas tô respirando, tô no lucro, né? O ar é de graça.

ALEXANDRA - Água tem por aqui?

SEVERINO - Tem… o que não falta é botequim por aqui.

ALEXANDRA - E colchão, cobertor…

SEVERINO - Eu tenho um cobertorzinho véio que me deram.

ALEXANDRA - Amigos? Muitos?

SEVERINO - Eu tenho conhecidos. Amigo era o meu cachorro, morreu.

ALEXANDRA - O meu também, chorei ontem sentindo saudades dele. Mas cê não quer adotar outro cachorro não?

SEVERINO - Eu não tenho condições de criar cachorro. Não vou pegar um animal pra ficar maltratado, então deixa. Peguei muito na rua, mas hoje em dia…

ALEXANDRA - Tem algum desejo pro ano novo?

SEVERINO - Eu quero paz, saúde e liberdade, o resto eu me viro.

00:15:16 - Problemas com celular (2)

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Partial Transcript: SEVERINO - Será muito caro pra consertar isso?

ALEXANDRA - Eu não sei como se conserta…

SEVERINO - Tem uma espécie de um liquidozinho aqui dentro que… tem um jeito, a menina me falou, mas eu esqueci.

ALEXANDRA - Não sei não, mas eu vou ver se eu encontro um pra trazer pra você, porque talvez…

SEVERINO - Tem um rapaz aqui que faz, segunda-feira eu vou perguntar pra ele quanto é que custa.

ALEXANDRA - Tá. Se eu souber de alguma coisa, eu aviso.

SEVERINO - O primeiro celular que eu ganhei, eu não quis. Se acessar minha biografia a senhora vai ver.

ALEXANDRA - Vou acessar e vou ver. Aqui não pega celular mesmo?

SEVERINO - Pega.

ALEXANDRA - Pega?

SEVERINO - Esse aqui pegava.

ALEXANDRA - Qual era? Vivo?

SEVERINO - Esse é Samsung, a operadora que é Vivo.

ALEXANDRA - Vivo, né? Eu uso Oi e não pega.

SEVERINO - Eu já usei Oi e pegava.

ALEXANDRA – Ah, é? Talvez desse lado, na Urca que não pega. Daquele lado, né? Que eu acho que as torres são aqui, né?

SEVERINO – É, tem uma torre, parece que é da Tim, não sei; mas diz que a Tim é uma operadora que nem em todo lugar pega. Oh, meu celular.

ALEXANDRA - Tô vendo. Ele também foi entrevistado agora pelo meu parceiro, vou ver lá o que eles estão fazendo. Foi um prazer, tá?

SEVERINO - O prazer é meu, estamos aí.

ALEXANDRA - A gente se fala depois, obrigada!