Ensaio histórico

Do Matheus Nascimento, aluno de História na UNIRIO, para o Projeto Água!nabara 

A história do território onde atualmente está assentado o bairro da Urca se confunde com a própria história de origem da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. A coroa portuguesa iniciou sua colonização em território americano no início do século XVI. No entanto, em um primeiro momento, a Baía de Guanabara e a área da futura cidade carioca ainda não haviam atraído colonizadores, estes mais interessados na consolidação da vila e dos engenhos das capitanias de São Vicente e de Pernambuco.

Foi esse o contexto em que franceses, liderados por Nicolau de Villegaignon, desembarcaram na Guanabara em 1555, na atual Ilha de Villegaignon, com o objetivo de estabelecer uma colônia francesa nas Américas, a chamada França Antártica. A coroa portuguesa, por sua vez, vendo seu poder no continente americano ameaçado com a chegada dos franceses, mobilizou-se e mandou expedições a fim de tomar o controle do território. Entretanto, apesar dos esforços dos europeus nessa disputa territorial, o conflito que se sucedeu não teve somente a participação dos agentes europeus. Nesse sentido, é importante valorizar a atuação dos grupos indígenas tanto nesse confronto, em específico, quanto na constituição da sociedade colonial. Ao contrário da visão de cunho racista, eurocentrada, o nativo não se configurava como uma massa de manobra, mas sim como sujeito ativo de sua própria história, possuidores de valores, culturas e interesses diversos.

Desse modo, houve alianças de ambas as partes envolvidas na contenda: os Tupinambás, também conhecidos como Tamoios, que na ocasião já eram inimigos dos colonos portugueses, se aliaram aos franceses; por sua vez, os Tupiniquins e os Temiminós, este último inimigo dos Tamoios, lutaram ao lado dos portugueses. Em 1560, na primeira batalha pelo território, os portugueses (liderados por Mem de Sá), tupiniquins e temiminós conquistam e destroem o Forte Coligny, na Ilha de Villegaignon. Alguns franceses se renderam, enquanto outros fugiram para o interior e buscaram refúgio juntamente com seus aliados tamoios. Após essa vitória significativa, Mem de Sá regressa à Bahia, assim como os indígenas retornam aos seus territórios, abandonando a Guanabara e abrindo o caminho para que os franceses e os tamoios voltassem a tentar o controle da área, fortificando-se em Uruçu-Mirim e na Ilha de Paranapuã (Outeiro da Glória e Ilha do Governador, respectivamente).

Em 1565, a Coroa Portuguesa organizou uma nova expedição para expulsar os franceses, tendo como capitão-mor Estácio de Sá. No dia 1º de março de 1565 é fundada a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro na “planície que fica entre o Pão de Assucar (sic) e o Morro Cara de Cão” (FAZENDA, 1904. p.80), antes mesmo da conquista do território por definitivo. Após travarem diversas batalhas contra os franceses e os tamoios, os portugueses – novamente com auxílio dos tupiniquins e dos temiminós, estes chefiados por Araribóia – conquistaram a Guanabara e começaram, de fato, o povoamento do território, em 1567. Araribóia, por ter contribuído na expulsão dos franceses, recebeu da Coroa Portuguesa uma sesmaria ao lado oposto da cidade recém fundada, com o objetivo de proteger a Baía de Guanabara contra novos invasores. Assim foi construído o aldeamento de São Lourenço, marcando o início da atual cidade de Niterói, única cidade brasileira que considera um indígena (Araribóia) como seu fundador.

É importante lembrar que, no período da fundação da cidade, o complexo dos Morros do Pão de Açúcar, da Urca e Cara de Cão eram separados do continente, formando a Ilha da Trindade. A região onde hoje se localiza a Praça General Tibúrcio e a Praia Vermelha era submersa pelo mar, como aparece em alguns documentos cartográficos da época, como o “Regimen das Águas da Cidade do Rio de Janeiro” e a carta de Reys-boeck, de 1624. Como a Ilha da Trindade se conectou com o continente, a partir da década de 1690, ainda é um problema histórico. Porém, Roberto Schmidt de Almeida aponta para a possibilidade de que um tômbolo, ou seja, uma faixa de areia que liga uma ilha ao continente, tenha sido formado e se mantido acima do nível do mar.

Após a conquista em 1567, estabelecendo o controle do território, a cidade foi transferida para o Morro do Castelo (antigo São Januário) e a área onde fora fundada a cidade passou a ser referida como “Cidade Velha”, sendo útil principalmente na defesa da Baía de Guanabara através da Fortaleza de São João (que abarca os fortes de São José, São Teodósio, São Diogo e São Martinho), juntamente com a posterior construção do forte da Praia Vermelha, no fim do século XVII.

Com o advento do Império, a região recebeu determinada atenção para abrigar instituições voltadas para a educação e a saúde. Assim, a Escola Militar foi erguida, impedindo o acesso público à atual Praia Vermelha, em 1846; havia, próximo ao forte desta praia, o Asilo de Inválidos Militares; entre os anos 1842 e 1852 foi construído o Hospício de Pedro II (atual prédio da UFRJ, na Av. Pasteur); e em 1872, D. Pedro II cedeu o terreno adjacente ao Hospício ao Instituto dos Cegos (atual Instituto Benjamin Constant). Nesse momento, ainda não podemos falar de zoneamento urbano, “mas de um planejamento de distribuição de infraestrutura e serviços públicos” (GIRÃO, 2014. p. 35), afastando-se das habitações populares do centro da cidade, consideradas insalubres, seguindo assim a ideologia sanitarista que terá sua maior influência no início do século XX, com as reformas de Pereira Passos.

Em 1880, o engenheiro Antônio de Paula Freitas apresentou um plano de cidade universitária naquele espaço, àquela época banhada pelas águas da Praia da Saudade (atual Av. Pasteur e Iate Clube do Rio de Janeiro) e da primeira Praia Vermelha (contínua à Praia da Saudade, onde hoje é parte da rua Ramon Franco). A ideia não fora efetivada e retornou, em 1929, com o urbanista francês Alfred Agache, que também não conseguiu implementar o projeto. O território, assim, a partir do final do século XIX, passou a atrair o olhar de empreendedores visando interesses econômicos naquela área.

E foi assim que, entre 1870 e 1880, o comerciante Domingos Fernandes Pinto apresentou o projeto de construção de um cais que ligaria a Praia da Saudade à Fortaleza de São João. Essa seria a primeira tentativa de urbanização daquela área como um bairro pois, segundo Claudia Girão:

[…] no próprio texto da concessão constata-se que a ideia de Domingos Fernandes Pinto, já em 1892, é de um grande empreendimento imobiliário na área aterrada que pretendia conquistar ao mar em todo o trecho entre a primeira praia Vermelha e o morro Cara de Cão, usando o morro da Urca como material para criar novas terras. […] (GIRÃO, 2014. p. 41)

Apesar de Domingos Fernandes Pinto conseguir a permissão para realizar as obras em 1894, somente a ponte de ligação foi construída. Em 1895, o Exército embargou o empreendimento do comerciante, alegando que as obras prejudicariam a defesa da fortaleza.

No início do século XX, em um contexto temporal marcado pelos ideais de modernidade, progresso e sanitarismo, traduzido na abertura da Avenida Central (atual Av. Rio Branco) e na intensa intervenção urbanística feita no governo do prefeito Pereira Passos na cidade do Rio de Janeiro, a atenção dada à região da Praia da Saudade foi intensificada. Assim sendo, a área foi responsável por abrigar a Exposição Nacional de 1908, que comemorava o 1º Centenário da Abertura dos Portos do Brasil ao Comércio Internacional. Essa importante exposição, além de demonstrar a proximidade do Brasil ao progresso, atraindo investimentos externos, também contribuiu para uma valorização daquele local. Para receber a exposição, houve um pequeno aterramento entre a Praia da Saudade e o morro da Urca: era o modesto início para a constituição de um bairro.

Após o evento supracitado, começou a ventilar a possibilidade de um caminho aéreo entre os morros da Urca, da Babilônia e do Pão de Açúcar, ligando-os. Através da concessão do então prefeito Serzedelo Correia, em 1909, o trecho da Praia Vermelha até o Morro da Urca foi inaugurado em 1912. No ano seguinte, em 1913, foi construído o trecho entre o morro da Urca e o Pão de Açúcar. O caminho até o Morro da Babilônia nunca foi realizado.

Em 1919, Domingos Fernandes novamente obtém a concessão, junto à prefeitura, para concluir seu projeto do final do século XIX, mas não consegue cumpri-lo. Em 1921, porém, surge uma figura importantíssima para a constituição do bairro: o engenheiro Oscar de Almeida Gama, que fundou a Sociedade Anônima Empresa da Urca a fim de construir o supracitado cais, nos moldes do contrato de 1919. O contrato foi ampliado em 1922, com o objetivo voltado para o aterramento e a construção do bairro, utilizando como material a extração de partes do morro da Urca. Além do aterro, a empresa tinha dentre suas obrigações a construção de uma escola (que veio a ser a Escola Minas Gerais) e de um Hotel Balneário (que mais tarde funcionou como o famoso Cassino da Urca e, posteriormente, serviu de sede para a TV Tupi).

O aterramento e constituição do futuro bairro aconteceu em dois momentos: o primeiro Plano de Abertura, em 22/07/1923 (PA  1498), foi responsável por delimitar a 1º seção do aterro, que tem como limites a Av. Pasteur, a Av. Portugal e a Rua Ramon Franco, área situada entre a Praia da Saudade e a primeira Praia Vermelha; o segundo Plano, em 25/09/1923 (PA 1510), determina a 2º seção, prolongando a Av. Portugal até a Praia da Urca, e aterrando o bairro até à Fortaleza de São João, com limites na Av. João Luís Alves e na Av. São Sebastião.

Sobre a venda de lotes no bairro, Girão nos conta que:

[…] em 1932 é criada pelo mesmo Oscar Gama — sob a condição de propriedade da Sociedade Anônima Empresa da Urca, tal como os terrenos do loteamento e o Hotel Balneário — a Companhia Construtora e Imobiliária do Rio de Janeiro, que viria a suceder a primeira empresa após sua extinção (1935); e “ficava claro que a maior parte dos negócios da Imobiliária seria com imóveis da Urca”. Antes mesmo de concluído o aterro, os terrenos ainda “dentro d’água” são negociados; a fase, agora, seria de construção arquitetônica e venda de lotes, casas e, pouco depois, apartamentos, todos com tipologias portadoras de diferentes influências, características do período. Surge assim o bairro da Urca.” (GIRÃO, 2014. P. 61).

O prédio da Escola Militar, citado anteriormente, foi destruído após o bombardeio no contexto da “Intentona Comunista”, em 1935, e demolido logo em seguida, abrindo a visão para a atual Praia Vermelha. Em 1938 é inaugurada, no mesmo local do prédio, a praça General Tibúrcio.

Para garantir e preservar a integridade do bairro, algumas medidas foram tomadas e reconhecidas pelos poderes públicos posteriormente: em 1988, através do Decreto Municipal nº 7451, foram tombados o antigo Cassino da Urca (Hotel Balneário), a ponte da Av. Portugal e a murada da Urca em toda a sua extensão, além de criar área de proteção das “edificações situadas na área de entorno”; em 2006, o Decreto Municipal nº 26578 declarou como Monumento Natural os morros Pão de Açúcar e da Urca, a fim de proteger e conservar a área e, em 2012 o monumento natural tornou-se parte do Patrimônio Mundial declarado pela UNESCO. Isso prova que o bairro da Urca, por fim, tem uma importância significativa para a história do Rio de Janeiro e do Brasil e que seu valor paisagístico e arquitetônico deve ser preservado.

Urca da contestação

Durante sua história, a região que hoje constitui o bairro da Urca também foi um espaço de contestação social, reunindo alguns eventos importantes de reivindicações, protestos, conflitos e lutas. O primeiro desses episódios ocorreu no ano de 1904 e foi um dos desdobramentos da agitação popular conhecida como Revolta da Vacina. A cidade do Rio de Janeiro se transformava rapidamente na virada do século XIX para o XX: o modernismo e o sanitarismo davam a tônica das políticas públicas perpetradas pelos governos. À época capital federal, o Rio deveria ser uma cidade moderna, aos moldes de Paris, e livre das doenças que assolavam a população ano após ano, como a febre amarela e a varíola. Para isso, o prefeito Pereira Passos, juntamente com o presidente Rodrigues Alves realizaram uma grande reforma na cidade, alargando ruas estreitas e abrindo grandes avenidas. Por outro lado, as classes populares, sobretudo a população negra, recém liberta, sofriam com o descaso público traduzido na invasão e demolição das habitações populares (cortiços) e na truculência da polícia, tudo em prol do progresso.

Dado o contexto, a Revolta da Vacina teve como estopim a decisão de tornar obrigatória a vacinação contra a varíola por parte do governo federal. Sobrevivendo à condições de vidas ruins e amedrontadas pela forma invasiva da vacinação, onde os agentes sanitários chegavam a invadir as casas, a população foi às ruas do centro do Rio contra a obrigatoriedade, destruindo lâmpadas da iluminação pública, montando barricadas, quebrando vidraças e entrando em conflito com a polícia, que reagiu violentamente contra a população. 

O clima de caos e desordem na cidade se configurou como uma oportunidade para os grupos de oposição ao governo federal, dentre eles militares florianistas e até monarquistas. Assim, um número expressivo de militares, alunos da Escola Militar, situada na atual Praça General Tibúrcio, tentaram um golpe de Estado contra Rodrigues Alves, presidente da República e representante da oligarquia cafeeira. Contudo, a marcha dos militares rumo ao Catete, sede do governo, foi impedida por uma série de fatores e a tentativa foi um completo fracasso. Após o evento, a Escola Militar foi transferida da Praia Vermelha para o bairro de Realengo, Zona Oeste do Rio de Janeiro.

Outro episódio importante que aconteceu no bairro foi a Manifestação Antifascista de 1935 ou, como mais comumente é denominada, a Intentona Comunista de 1935, que teve como objetivo depor o então presidente Getúlio Vargas. Liderado pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), o movimento se caracterizava por ser contra o imperialismo estadunidense e o autoritarismo, além de ser antifascista. Após o fracasso da insurreição, o governo Vargas, através de sua DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), utilizou a rebelião para criar a “ameaça comunista” e justificar a centralização do Poder Executivo, legitimando o golpe que deu início à ditadura do Estado Novo, que durou de 1937 a 1945.

Em 1934, o clima no Brasil e, principalmente, no Rio de Janeiro, era de efervescência política. O governo provisório de Vargas, que estava no poder desde 1930, aprovou uma nova Constituição, restabelecendo o regime democrático, sendo Vargas eleito presidente em uma votação indireta em um mandato de quatro anos. Desse modo, alguns partidos foram sendo organizados. A Ação Integralista Brasileira (AIB), inspirada da ideologia fascista que ganhava força e poder na Europa (notadamente na Alemanha e na Itália), conseguia espaço em território brasileiro. Em 1935, como um partido abrangente formado, hegemonicamente, por tenentistas e comunistas, a Aliança Nacional Libertadora (ANL) foi criada, fazendo oposição ao governo de Vargas, tendo como presidente de honra Luís Carlos Prestes, líder tenentista na década de 1920 que adotou o ideal comunista em seu exílio. Segundo a historiadora Dulce Pandolfi, o “PCB logo percebeu que a ANL poderia ser um importante instrumento para derrubar Vargas e implantar um governo nacional e popular.” (PANDOLFI, p.177)

Em julho de 1935, porém, a ANL foi posta na ilegalidade pela recém criada Lei de Segurança Nacional por ser considerada uma ameaça à ordem estabelecida após a publicação de um manifesto escrito por Prestes contra Vargas. Dessa maneira, o PCB começou a ver uma revolução comunista como uma solução viável acreditando que teria o apoio dos trabalhadores e de alguns membros do Exército Brasileiro, que estava bastante fragmentado na época, havendo frequentemente atos de insubordinação da baixa oficialidade em relação a seus superiores.

A revolução, assim, iniciou no Rio Grande do Norte, onde alguns militares e militantes tomaram o poder da capital da cidade no dia 23 de novembro de 1935, fracassando no dia 27 quando as tropas do Exército e da Polícia de estados vizinhos retomaram o controle. Em seguida, houve uma rebelião em Pernambuco, no dia 24, onde havia um núcleo de militares comunistas. Mais uma vez, os insurretos não atingiram o sucesso. 

No Rio, o levante teve início no dia 27 em três pontos da cidade: na Vila Militar, em Realengo; na Escola de Aviação, em Campo dos Afonsos e no 3º Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha, no prédio que abrigava a Escola Militar. As forças legalistas, novamente, venceram a tentativa de insurreição e os responsáveis foram detidos. Nesse evento, o prédio da Praia Vermelha foi destruído e demolido posteriormente, permitindo o acesso público da supracitada praia. Atualmente, na praça General Tibúrcio, podemos encontrar um monumento em homenagem aos combatentes que lutaram contra a rebelião.

Em 1966, dois anos após o golpe civil-militar que depôs o presidente João Goulart, houve na Faculdade Nacional de Medicina da UFRJ, localizada na Urca, o Massacre da Praia Vermelha. Após a tomada de poder que instaurou a ditadura civil-militar em 1964, algumas instituições, entidades e pessoas que eram consideradas ameaças ao regime foram reprimidas, posta da ilegalidade ou presas. 

Assim, a União Nacional de Estudantes (UNE), a principal organização estudantil do ensino superior brasileiro, tornou-se ilegal pelo governo ditatorial, passando a exercer suas atividades, políticas e sociais, na clandestinidade. Além disso, o governo desejava fechar o acordo MEC-USAID, que instalaria o modelo educacional estadunidense no Brasil. Contra as perseguições, o autoritarismo e o acordo MEC-USAID, 600 estudantes realizaram um protesto contra a ditadura em frente à Faculdade Nacional de Medicina. A polícia tentou, sem sucesso, impedir a manifestação e, assim, os estudantes ocuparam as dependências da Universidade. A fim de suprimir o protesto, na madrugada do dia seguinte a polícia invade o interior da instituição e combate violentamente a ocupação, promovendo espancamentos e a prisão dos estudantes. A resposta policial marcou para sempre a história do movimento estudantil.

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